Monica Uehara


"Quem pensa que a comida só faz matar a fome está redondamente enganado. Comer é muito perigoso. Porque quem cozinha é parente próximo das bruxas e dos magos. Cozinhar é feitiçaria, alquimia. E comer é ser enfeitiçado. "


"Comer é uma felicidade, se se tem fome. Todo mundo sabe disto. Até os ignorantes nenezinhos. Mas poucos são os que se dão conta de que felicidade maior que comer é cozinhar." 
 (Rubem Alves)

Pessoas queridas, vou me ausentar um pouquinho da blogosfera (mas volto logo!) é que nesta semana estamos recebendo hóspedes aqui em casa (os sogros!) e na próxima semana já estaremos de mudança! Como muitos amigos já sabem, estaremos de volta ao Brasil em breve. Então, já viu né?
Mas, por enquanto deixarei vocês em ótima companhia (olha só que belíssimo o texto do Rubem Alves que eu trouxe hoje. É o meu preferido!
Já contei aqui que sou apaixonada por livros, não é? E um dos meus autores "de cabeceira" é o Rubem Alves.
Este texto que transcrevo a seguir, tem muito a ver comigo. Também vou a feira e fico encantada com a beleza, as cores, os aromas dos vegetais! Agora saio fotografando tudo para não esquecer as belas imagens. Olha só lá em cima as fotos que eu fiz de frutas vermelhas! Não são de encher os olhos? Claro que não para todas as pessoas, mas, para nós que adoramos gastronomia e culinária essas coisas são belíssimas.
Mas, o texto não fala só do "amor pelos legumes" rsss. E minha frase favorita é a que mencionei no início do post, porque me sinto assim mesmo.
Cozinhar me traz muitos benefícios, pois sempre antes de preparar algum prato, procuro entrar em sintonia com o meu melhor e desejar que quem prove a minha comida tenha uma ótima experiência. Evito cozinhar se estou mal humorada ou em energia mais baixa, porque não raro costuma não dar certo.
Me lembro que o que me encantou quando comecei as experiências na Cozinha (bem cedo mesmo, com uns 7 ou 8 anos) foi justamente a alquimia, a transformação de ingredientes e o encantamento que o resultado podia causar nas pessoas.
Não podemos esquecer que se podemos "encantar" as pessoas com nossos quitutes, o oposto também é verdadeiro, ou seja, podemos "envenenar" os alimentos com energias não tão positivas.
Fiquem com Deus! E logo volto para atualizar minhas visitinhas, afinal de contas, agora que "viciei", não consigo mais ficar sem vocês!

A festa de Babette
Rubem Alves
"Um dos meus prazeres é passear pela feira. Vou para comprar. Olhos compradores são olhos caçadores: vão em busca de caça, coisas específicas para o almoço e a janta. Procuram. O que deve ser comprado está na listinha. Olhos caçadores não param sobre o que não está escrito nela. Mas não vou só para comprar. Alterno o olhar caçador com o olhar vagabundo. O olhar vagabundo não procura nada. Ele vai passeando sobre as coisas. O olhar vagabundo tem prazer nas coisas que não vão ser compradas e não vão ser comidas. O olhar caçador está a serviço da boca. Olham para a boca comer. Mas o olhar vagabundo, é ele que come. A gente fala: comer com os olhos. é verdade. Os olhos vagabundos são aqueles que comem o que vêem. E sentem prazer. A Adélia diz que Deus a castiga de vez em quando, tirando-lhe a poesia. Ela explica dizendo que fica sem poesia quando seus olhos, olhando para uma pedra, vêem uma pedra. Na feira é possível ir com olhos poéticos e com olhos não poéticos. Os olhos não poéticos vêem as coisas que serão comidas. Olham para as cebolas e pensam em molhos. Os olhos poéticos olham para as cebolas e pensam em outras coisas. Como o caso daquela paciente minha que, numa tarde igual a todas as outras, ao cortar uma cebola viu na cebola cortada coisas que nunca tinha visto. A cebola cortada lhe apareceu, repentinamente, como o vitral redondo de catedral. Pediu o meu auxílio. Pensou que estava ficando louca. Eu a tranqüilizei dizendo que o que ela pensava ser loucura nada mais era que um surto de poesia. Para confirmar o meu diagnóstico lembrei-lhe o poema de Pablo Neruda "A Cebola", em que ele fala dela como "rosa d'água com escamas de cristal". Depois de ler o poema do Neruda uma cebola nunca será a mesma coisa. Ando assim pela feira poetizando, vendo nas coisas que estão expostas nas bancas realidades assombrosas, incompreensíveis, maravilhosas. Pessoas há que, para terem experiências místicas, fazem longas peregrinações para lugares onde, segundo relatos de outros, algum anjo ou ser do outro mundo apareceu. Quando quero ter experiências místicas eu vou à feira. Cebolas, tomates, pimentões, uvas, caquis e bananas me assombram mais que anjos azuis e espíritos luminosos. Entidades encantadas. Seres de um outro mundo. Interrompem a mesmice do meu cotidiano.
Pimentões, brilhantes, lisos, vermelhos, amarelos e verdes. Ainda hei de decorar uma árvore de Natal com pimentões. Nabos brancos, redondos, outros obscenamente compridos. Lembro-me de uma crônica da querida e inspirada Hilda Hilst que escandalizou os delicados: ela ia pela feira poetizando eroticamente sobre nabos e pepinos. Escandalizou porque ela disse o que todo mundo pensa mas não tem coragem de dizer. Roxas berinjelas, cenouras amarelas, tomates redondos e vermelhos, morangas gomosas, salsinhas repicadas a tesourinha, cebolinhas, canudos ocos, bananas compridas e amarelas, caquis redondos e carnudos (sobre eles o Heládio Brito escreveu um poema tão gostoso quanto eles mesmos), mamões, úteros grávidos por dentro, laranjas alaranjadas (um gomo de laranja é um assombro, o suco guardado em milhares de garrafinhas transparentes), cocos duros e sisudos, pêssegos, perfume de jasmim do imperador, cachos de uvas, delicadas obras de arte, morangos vermelhos, frutinhas que se comem à beira do abismo... Minha caminhada me leva dos vegetais às carnes: lingüiças, costelas defumadas, carne de sol, galinhas, codornizes, bacalhau, peixes de todos os tipos, camarões, lagostas. Os vegetarianos estremecem. Compreendo, porque na alma eu também sou vegetariano. Fosse eu rei decretaria que no meu reino nenhum bicho seria morto para nosso prazer gastronômico. Mas rei não sou. Os bichos já foram mortos contra a minha vontade. Nada posso fazer para trazê-los de volta à vida. Assim, dou-lhes minha maior prova de amor: transformo-os em deleite culinário para que continuem a viver no meu corpo. De alguma maneira vivem em mim todas as coisas que comi. Sobre isso sabia muito bem o genial pintor Giuseppe Arcimboldo (1527-1593), que pintava os rostos das pessoas com os legumes, frutas e animais que se encontram nas bancas da feira. (Dê-se o prazer de ver as telas de Arcimboldo. Nas livrarias, coleção Taschen, mais ou menos quinze reais).
Meus pensamentos começam a teologar. Penso que Deus deve ter sido um artista brincalhão para inventar coisas tão incríveis para se comer. Penso mais: que ele foi gracioso. Deu-nos as coisas incompletas, cruas. Deixou-nos o prazer de inventar a culinária.
Comer é uma felicidade, se se tem fome. Todo mundo sabe disto. Até os ignorantes nenezinhos. Mas poucos são os que se dão conta de que felicidade maior que comer é cozinhar. Faz uns anos comecei a convidar alguns amigos para cozinharmos juntos, uma vez por semana. Eles chegavam lá pelas seis horas (acontecia na casa antiga onde hoje está o restaurante Dali). Cada noite um era o mestre cuca, escolhia o prato e dava as ordens. Os outros obedeciam alegremente. E aí começávamos a fazer as coisas comuns preliminares a cozinhar e comer: lavar, descascar, cortar — enquanto íamos ouvindo música, conversando, rindo, beliscando e bebericando. A comida ficava pronta lá pelas 11 da noite.
Ninguém tinha pressa. Não é por acaso que a palavra comer tenha sentido duplo. O prazer de comer, mesmo, não é muito demorado. Pode até ser muito rápido, como no McDonald's. O que é demorado são os prazeres preliminares, arrastados — quanto mais demora maior é a fome, maior a alegria no gozo final. Bom seria se cozinha e sala de comer fossem integradas — os arquitetos que cuidem disso — para que os que vão comer pudessem participar também dos prazeres do cozinhar. Sábios são os japoneses que descobriram um jeito de pôr a cozinha em cima da mesa onde se come, de modo que cozinhar e comer ficam sendo uma mesma coisa. Pois é precisamente isto que é o sukiyaki, que fica mais gostoso se se usa kimono de samurai.
Quem pensa que a comida só faz matar a fome está redondamente enganado. Comer é muito perigoso. Porque quem cozinha é parente próximo das bruxas e dos magos. Cozinhar é feitiçaria, alquimia. E comer é ser enfeitiçado. Sabia disso Babette, artista que conhecia os segredos de produzir alegria pela comida. Ela sabia que, depois de comer, as pessoas não permanecem as mesmas. Coisas mágicas acontecem. E desconfiavam disso os endurecidos moradores daquela aldeola, que tinham medo de comer do banquete que Babette lhes preparara. Achavam que ela era uma bruxa e que o banquete era um ritual de feitiçaria. No que eles estavam certos. Que era feitiçaria, era mesmo. Só que não do tipo que eles imaginavam. Achavam que Babette iria por suas almas a perder. Não iriam para o céu. De fato, a feitiçaria aconteceu: sopa de tartaruga, cailles au sarcophage, vinhos maravilhosos, o prazer amaciando os sentimentos e pensamentos, as durezas e rugas do corpo sendo alisadas pelo paladar, as máscaras caindo, os rostos endurecidos ficando bonitos pelo riso, in vino veritas... Está tudo no filme A Festa de Babette. Terminado o banquete, já na rua, eles se dão as mãos numa grande roda e cantam como crianças... Perceberam, de repente, que o céu não se encontra depois que se morre. Ele acontece em raros momentos de magia e encantamento, quando a máscara-armadura que cobre o nosso rosto cai e nos tornamos crianças de novo. Bom seria se a magia da Festa de Babette pudesse ser repetida..."
O texto acima foi publicado no jornal "Correio Popular", Campinas(SP), com o qual o educador e escritor colabora.

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21 Responses
  1. O QUE MAIS ME ATRAIU NA COZINHA FORAM OS AROMAS ,FICAVA LÁ FORA DA CASA BRINCANDO QUANDO MINHA MÃE OU OUTRA VIZINHA ESTAVA FAZENDO ALGO NA COZINHA ,EU FICAVA IMAGINANDO O QUE SERIA AQUILO COM CHEIRO TÃO BOM,OU NEM TÃO BOM ASSIM ,QUANDO MINHA MÃE COLOCAVA MEU PRATO EU QUERIA SENTIR O CHEIRO DE CADA COISA EM PARTICULAR ,MAS MINHA MÃE COITADA SEM TEMPO BRIGAVA COMIGO QUE QUERIA UMA COISA DE CADA VEZ PARA Ñ MISTURAR!
    POR ISSO ADORO COZINHAR SENTIR OS AROMAS,SABORES TEXTURAS ENFIM A TAL ALQUIMIA DE INGREDIENTES!
    BEIJO


  2. Ai ai... é essa magia toda da cozinha que me atraiu pra gastronomia. É bem isso mesmo, tenho prazer em dar prazer aos outros através da comida :)
    Beeeijo
    Lindo post


  3. Bolo Says:

    Monica ficarei te esperando!!
    boa visita com os sogros e uma ótima mudança!!
    deixei um recadinho para vc lá em respota ao seu comentário!!
    gostei jmuito desta parte do TEU texto:
    "Cozinhar me traz muitos benefícios, pois sempre antes de preparar algum prato, procuro entrar em sintonia com o meu melhor e desejar que quem prove a minha comida tenha uma ótima experiência. Evito cozinhar se estou mal humorada ou em energia mais baixa, porque não raro costuma não dar certo."
    Mais alguma coisa que temos em comum!
    beijokas
    e ótimo finde!


  4. Amiga, sei o trabalhão que significa uma mudança... Mas com certeza está levando na sua bagagem interior muita riqueza! Mudar abre nossa mente, é maravilhoso... Imagino a saudade que deve estar sentindo do Brasil!
    Tudo de bom nessa nova etapa...
    Bjokas

    Lilica


  5. Afff....mudança é complicado imagina de um pais pro outro vixi quero nem pesnar amiga...boa sorte e boa viagem e bem vinda ao Brasil novamente...rs
    Bjinhus e boa semana!!!


  6. Realmente a culinária me lembra a alquimia, usar a matéria prima para criar pratos nos quais a mistura de sabores e ingredientes algumas vezes faz com que as características originais mudem completamente é fantástico! Boa viagem de volta ao Brasil e aproveite bastante a visita dos sogros, Monica! Bom passeio e nos vemos de volta em breve!


  7. Oi, Mônica,
    Estarei esperando a sua volta nos próximos posts! Vai voltar ao Brasil? Que bom!!! Espero que seja tranquila a viagem e todos os preparativos!
    Adorei o texto! Que linda crônica!!!Pra mim, a Gastronomia é puro encantamento! Sou fascinada pelos filmes "Como água para chocolate" e "Chocolate", com a Juliette Binoche!
    Seu blog é encantador, porque você vai sempre além da Gastronomia, ainda traz histórias deliciosas de se ler!
    Beijos!


  8. Fabiana Says:

    Monica,
    Adorei o post, não conhecia Rubem Alves.
    Eu sempre gostei de cozinhar, principalmente porque minha mãe é uma cozinheira de mão cheia, mas acho que a paixão surgiu junto com o blog, estava triste e deprimida, e o blog me ajudou muito.
    E cozinhando, recebo elogios, o que é otimo para a auto estima.

    Vou sentir a sua falta, mas ficarei esperando os seus maravilhosos posts e suas receitinhas deliciosas.
    beijos


  9. Fla Says:

    Bom retorno ao Brasil querida.
    Beijos


  10. RUTE Says:

    Que post delicioso vc nos deixou Mónica!
    Também sou apaixonada por livros. Ando sempre com um debaixo do braço, pra todo o lado que vou.
    Ainda não li esse, mas deu vontade de comprar. Vou procurar ele na livraria.
    Adorei as frases iniciais, a "coisa" de feitiçaria e etc e tal, ih ih ih.
    Bruxinhas nós????? nããããão :)
    Cá em Portugal costuma-se dizer: «os homens se pegam pela barriga» por isso faz todo o sentido ser boa cozinheira, caso se queira encontrar um bom marido :)
    Beijinhos e boa mudança. Bom feng shui ;)


  11. Querida Monica
    Concordo que cozinhar é pura alquimia, tanto que penso que "peguei" definitivamente meu marido "pelo estômago"! E não foi pela sopa de tartaruga não - hehehe!
    Bjim
    Léia


  12. Monica,
    Fazia muito tempo que eu nãa ia a uma feira, outro dia pesseando por São Paulo, encontrei uma e fiquei encantada! Nunca mais compro legumes etc em supermercados.
    Comprei temperos, chás, legumes, frutas, etc
    Amei!
    Beijos,
    A Copê


  13. Anônimo Says:

    Passei para lhe desejar um ótimo final de semana, que seja regado de muita paz e harmonia!!!

    Mil beijokas!!!!!


  14. Juliana Says:

    Muito legal esse texto amiga! Fiz uma leitura dinâmica, mas outra hora leio com a devida calma e atenção. Como estão os preparativos para a mudança?! Espero que esteja tudo certo por aí. Tem sorteio lá no blog, se quiser pode participar! Se tu ganhar, espero tu chegar no Brasil para enviar! Beijos e boa semana, Ju


  15. Tida Says:

    Monica,
    Feliz retorno.
    O texto escolhido não poderia ter sido melhor, já que possso voltar ao seu blog e não sentir falta de novidade. Poderei lê-lo varias vezes. Eu particularmente adoro uma feira.
    Bjs


  16. Fabiana Says:

    Ola!!!
    Tem um selinho para vc no meu blog.
    bjs


  17. Moniquinha.. por onde andas? Deve ter voltado para o Brasil e nem conseguido mexer nas panelas, acertei? rss
    bjs


  18. Juliana Says:

    Monica querida! Já chegou no Brasil? Desejo muita felicidade neste retorno, pra ti, pra Sophia e pro Silvio e que a adaptação (ou readaptação) seja tranquila e rápida! Saudade de ti por aqui! Beijos, Ju


  19. Mônica amiga que lindo!!!, aguardo sua volta ansiosamente, tudo de bom queridona p/ vc e família, bjkas enormes e saudades...,;)... ♥!!!, com carinho, Ana ☺.


  20. Oi Mônica,
    Você sabe a receita que queria fazer do Kanela y Limón, pois é a 1ª experiência foi frustrante, o bolo ficou com a massa ótima mas depois murchou muito e ficou ligeiramente solado, eu fico danada quando eu sigo tudo direitinho (quase) e não funciona, mas vou fazer outra tentativa em breve e depois te conto, bjs
    Maura


  21. Oi, Mônica,
    já está no Brasil?
    Espero que esteja tudo bem.
    Beijos!